Duas irmãs conseguiram na 1. Vara Federal de Caraguatatuba/SP uma autorização para que sejam realizados os procedimentos médico-hospitalares necessários à reprodução assistida e fertilização in vitro, relativos à doação de óvulos entre ambas. A decisão, do dia 19/9, é do juiz federal Gustavo Catunda Mendes.
As irmãs (autoras da ação) pediram o afastamento do ato normativo constante das Resoluções nº 2.121/2015 e 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina, cujo item IV, número 2, dispõe sobre a necessidade de anonimato entre o doador e o receptor de gametas: “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”, diz o ato.
Uma das irmãs (37 anos de idade) argumentou que possui problemas de fertilidade relacionados à idade e à endometriose. Demonstrou, em relatório médico, que se submeteu, em 2014, a uma laparoscopia com ressecção de endometriose intestinal e, em consequência desse procedimento, não pode mais engravidar pelos meios naturais. Disse que já se submeteu a duas tentativas de fertilização in vitro sem sucesso, diagnosticando-se falência ovariana irreversível associada à endometriose pélvica e aos múltiplos tratamentos cirúrgicos.
Nesse contexto, sua irmã de 32 anos de idade relatou que está na faixa etária compatível para a doação de óvulos, encontra-se em bom estado de saúde e está disposta a passar pelo procedimento em benefício da irmã.
Um pedido de liminar havia sido negado pela 1a Vara Federal de Caraguatatuba, tendo a parte autora recorrido ao Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3), mas sem obter sucesso. Houve nova manifestação das autoras para reanálise do pedido no 1o Grau, desta vez com informações complementares, principalmente referentes aos dados e consentimento da irmã doadora.
“No presente caso, a atuação e o controle do Poder Judiciário se legitima para fins do reconhecimento da parcial procedência do pedido, ante o patente risco de a norma do Conselho Federal de Medicina preterir o direito à vida e o direito à saúde estampados na Constituição Federal de 1988, o que não se deve admitir ante flagrante ilegalidade”, afirma o juiz na decisão.
Gustavo Mendes ressalta que, apesar do zelo e da cautela constantes na Resolução CFM nº 2121/2015, sucedida pela Resolução CFM nº 2.168/2017, verifica-se no caso “planejamento de reprodução familiar assistida, através da doação de óvulos entre membros da mesma família (duas irmãs), com consentimento recíproco entre todas as pessoas envolvidas, inclusive com o amparo em laudos médico e psicológico”.
Segundo o magistrado, nesse caso impõe-se a priorização e preservação do inviolável direito à vida (CF, art. 5º, caput e inciso X) e do direito à saúde (CF, art. 196), bem como do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III). “Tratando-se de irmãs, com comprovado histórico médico de impossibilidade de geração de filhos por meios exclusivamente próprios, não deve prevalecer a aplicação da norma para utilização das técnicas de reprodução assistida, hipótese em que a preservação de sigilo entre doador e receptor estaria sendo priorizada em detrimento do direito à vida que se pretende exercer a partir da reprodução assistida através da doação de óvulos entre irmãs, o que não se deve admitir ante a interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro”.
Para Gustavo Mendes, restou comprovado nos autos que em razão da idade e das limitações de saúde da autora, a doação de óvulos se encontra recomendada por atestado médico e também por parecer psicológico, de maneira que a norma acessória não deve preponderar sobre a norma principal (direito à vida) insculpida na Constituição Federal.
“Ademais, não se sustenta a invocada garantia do anonimato no sentido de evitarem-se complicações futuras nos aspectos legais e psicológicos […]. Certamente representa querer prevalecer ditames de convenção e sob duvidosa invocação da ética e da moral, em notável negação do amor e da fraternidade que envolve a doação de órgãos (óvulos) entre irmãs, para, em última análise, se imperar o direito à vida e a efetividade do planejamento familiar”, afirma o juiz.
Gustavo Mendes acrescenta, ainda, que o procedimento envolve pessoas maiores e capazes, e não menores relativamente capazes ou em idade avançada e que poderiam gerar suscitações diversas. “Cumpre ao Estado proporcionar meios que amparem tal pretensão familiar, e não oferecer óbices ou dificuldades à consecução dos procedimentos médicos, sobretudo quando recomendados por atestado médico e sob amparo em parecer psicológico”.
Por fim, o juiz afastou a aplicação do item IV, número 2, das Resoluções CFM nº 2.121/2015 e 2.168/2017, e concedeu autorização para que sejam realizados os procedimentos médico-hospitalares necessários à reprodução assistida e fertilização in vitro, relativos à doação de óvulos entre as irmãs. Além disso, condenou o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CRM-SP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) à obrigação de não-fazer, para se absterem de adotar eventuais medidas ético-disciplinares ou incursão dos profissionais médicos e de saúde envolvidos no tratamento de reprodução assistida e fertilização in vitro entre as irmãs, sob pena de multa diária em caso de descumprimento. (RAN)
Procedimento Comum Cível no 5000757-45.2019.4.03.6135 – íntegra da sentença
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