Urbanismo de Canteiro no Vila Cristiana: por uma arquitetura como ação social

Moradias precárias, sem regularização, estão em projeto universitário na Vila Cristiana     (divulgação)    

Por Dr. Adalberto Retto Jr

Entre arquitetos e urbanistas há uma preocupação generalizada de que este seja o momento de renascimento, regeneração e requalificação da cidade, e que tais ações devem visar, sobretudo, superar e resolver as desigualdades territoriais, reconstruindo o tecido social.
No âmbito universitário potencializa-se tal reflexão em função da denominada Curricularização da Extensão Universitária. A Ação Vila Cristiana – Laboratório de Dinâmicas Projetuais entre Gerações, realizada nos dias 15 e 16 de dezembro , por um lado insere-se no projeto Urbanismo de Canteiro , que destaca a escala da pequena obra, do urbanismo “diário”, “cotidiano”. Por outro lado, articula-se ao projeto de curricularização do curso de arquitetura e urbanismo – a Cidade como Laboratório de Práticas Aplicadas –, que objetiva dar suporte à construção coletiva da cidade, colocando o aluno e o cidadão como protagonistas da ação transformadora.
Para tal, é necessário expandir a ideia não só de Planejamento Urbano, mas também de “Canteiro de Obras”.

Este, em geral, é entendido apenas como uma construção física, mas na proposta incorpora uma urgente e profunda reflexão sobre a função da cidade, em sua dimensão de espaço político por excelência, sobre o direito – do indivíduo e da comunidade – à cidade, à coesão social, à inclusão, à sustentabilidade.
Como quase sempre acontece no debate em torno de políticas públicas, apresenta-se a natureza multissemântica das palavras e cada ator molda o significado dos termos aos seus interesses e visões, na tentativa de circunscrever ou delinear possibilidades. Para arquitetos e urbanistas, a regeneração não passa somente pela transição para a cidade ecológica, apesar de todas as ambiguidades, mal-entendidos ou incertezas que isso pode significar. Passa também pela revisão substancial de nossa ação, como enfatizou Flávio Villaça em seu texto Crise do planejamento urbano (Revista Perspectiva, v. 9, n. 2, abr./jun. 1995) e durante a Primeira Aula sobre História do Planejamento Urbano no Brasil (TV Unesp, 2016). Nas duas ocasiões Villaça reforça a tese de que o Plano Diretor é uma lei feita para “não pegar”, remetendo a uma afirmação de Paul Singer: “Os planos diretores fracassaram não só em São Paulo, mas em todo o Brasil e na América Latina. Fracassaram não só porque eram falhos, mas porque tomaram os desejos pela realidade.” (Singer, Paul, 1995, p. 177).

A arquitetura e o urbanismo têm profundas implicações sociais. Como produto da ação do homem, são os principais geradores da identidade coletiva e os protagonistas diretos dos processos históricos, através dos quais diferentes grupos sociais competiram pelo poder, permitindo que sejam lembrados ao longo dos séculos. Do ponto de vista sociológico, portanto, são forma, imagem, representação simbólica e não apenas uma função essencial das práticas sociais que constituem a vida cotidiana.
Como qualquer indivíduo, o arquiteto também está diretamente envolvido na sociedade onde se insere (e na lógica de poder dessa sociedade) e nunca pode aproximar-se do espaço diante de seus olhos com total liberdade, como se fosse a pedra bruta de um escultor.


Nesse sentido, após a crise das grandes narrativas do século XX, a função social da arquitetura adquiriu características inéditas no mundo global, com implicações significativas do ponto de vista do planejamento urbano, identificando o epicentro teórico de uma nova questão urbana. Com certeza, esses são processos que têm (e, nas próximas décadas, possivelmente terão) consequências significativas para a vida dos seres humanos, com resultados ainda em aberto. De fato, a arquitetura pode produzir dinâmicas de exclusão ou inclusão social sem necessariamente recorrer às estruturas panópticas, mas de forma menos explícita e, por vezes, até “democrática” tornando-se mais ou menos acessível, utilizável e adequada ao ambiente em que está inserida. Do ponto de vista do seu impacto estético, também pode ser ecologicamente compatível ou, ao contrário, pode continuar a ter uma atitude de dominação em relação à natureza, sem se preocupar com as consequências inevitáveis e catastróficas desse processo. Por fim, a arquitetura pode produzir memória coletiva ou, pelo contrário, esquecer-se dos indivíduos e sua história, terminando muitas vezes no beco sem saída de uma experimentação com fim em si mesma e desprovida de qualquer relação com a ação social da qual deveria fazer parte.
Mas a integração social, ou melhor, o conjunto de métodos através dos quais os indivíduos conseguem conviver pacificamente entre si e procurar o interesse coletivo, parece hoje possível apenas por meio da concretização de projetos capazes de abrir novos espaços de socialização e encontro entre diferentes culturas e estilos de vida, projetos atentos às questões ecológicas e, ao mesmo tempo, produtores de memória e sentimento de pertencimento.


Num contexto de fundo, em que as relações sociais mudam de natureza, desgastando-se e virtualizando-se, e em que há um aumento da perda de seus componentes, a arquitetura e a sociedade são inevitavelmente chamadas a encontrar-se e a caminhar juntas.
As chamadas políticas da microrregeneração começam a ter protagonismo. Como costuma ocorrer em obras urbanas feitas de forma esporádica por alguns grupos e em processos de elaboração de Planos Diretores, a intervenção dos particulares vem sendo substituída pela implementação de estratégias elaboradas na esfera pública, ou seja, dos cidadãos, num processo de subsidiariedade horizontal, sobretudo com modelos inspirados nos (assim chamados) acordos de colaboração. Da mesma forma, a decisão sobre obras de pequeno, médio e grande porte, vem pouco a pouco passando por concepções, decisões e desenhos colaborativos em processos participativos mais amplos, orientações e recomendações provenientes da literatura especializada e das experiências de campo particularmente significativas.
Planejamento Urbano, Projetos Urbanos e Canteiro de Obras, portanto, não podem ser entendidos apenas como operações que abordam o potencial construtivo ligado ao direito de propriedade, oferecendo assim uma visão mínima. A noção desses termos deve ser reconstruída como uma forma de intervenção de entidades no próprio território, de acordo com uma proposta de desenvolvimento global e harmonioso.
Com relação às necessidades habitacionais efetivas da comunidade uma nova abordagem destaca-se em relação à vocação concreta de cada local. Para isso, deve-se considerar tanto os valores ambientais e paisagísticos, como a proteção da saúde e de uma vida saudável dos habitantes, as necessidades econômicas e sociais da comunidade enraizada no território ou ainda, em última análise, o modelo de desenvolvimento a ser implantado nesses lugares.
É imperativo levar em conta a história, tradição, localização e uma reflexão sobre o futuro da essência de cada local, reflexão essa realizada (por auto-representação e autodeterminação) pela própria comunidade, por meio das decisões dos próprios conselhos representativos e, antes disso, pela participação dos cidadãos nos processos derivados de ações cívicas coletivas baseadas em projetos pontuais e de ações decorrentes de eventos cívicos híbridos, que se caracterizam tanto pela dimensão coletiva de união como pelo impulso à mudança social.


Por fim, é mister entender a participação como um processo de atribuição e organização de significados, de acordo com cenários alternativos no que diz respeito ao nível da realidade referencial imediata e aos significados que lhe estão associados conforme padrões ou códigos estáveis e compartilhados e, portanto, um processo que deve ser entendido como fato social coletivo. Dessa forma, num horizonte coletivo, a imaginação torna-se uma possibilidade de prefigurar novas formas de representar o futuro.
Diante do exposto, na disciplina Canteiro Experimental abrem-se três eixos de experiência em canteiros: Canteiro de Obras, Canteiro de Construção Social e Canteiro de Cidadania. Assim, o Canteiro Experimental visa implementar políticas sociais e de intervenção no território perseguindo os seguintes objetivos secundários:
– Inclusão social e combate à pobreza;
– Pacto de cidadania ativa;
– Princípio da igualdade e apoio aos direitos do indivíduo;
– Solidariedade social.
O objetivo primário é a reconstrução de laços sociais, de lugares de compromisso para onde todas as forças atuantes na sociedade, segundo a competência e o papel de cada uma delas, possam convergir para fazer o bem em prol do território e das pessoas que ali vivem, sobretudo os mais desassistidos. Em especial, no que se refere ao respeito pelos princípios da igualdade de oportunidades e de tratamento, pretende-se implementar uma política de intervenção social que não discrimine nem segregue, mas que reconheça o mesmo valor e a mesma atenção às diferentes questões sociais e econômicas críticas, visando mitigar as tensões sociais que podem surgir diante de múltiplos pedidos de intervenção pública e serviços sociais para satisfazer as necessidades primárias dessas pessoas.
Ao posicionar nosso olhar sobre as cidades, e não mais apenas em práticas construtivas que moldavam a disciplina Canteiro de Obras, discutir questões centrais é uma forma de mostrar a importância de medir nossos discursos em comparação com a concretude dos problemas mais amplos.
As cidades são uma materialização da ação pública: estratificações de ações, projetos e práticas que uma pluralidade de atores públicos e privados, individuais e coletivos, põe em jogo. Lidar com as cidades, portanto, olhando para as semelhanças e diferenças que as atravessam, obriga-nos a um olhar mais amplo e complexo que vai além de competências e disciplinas específicas. Obriga-nos a “manter a coesão” na maneira como a disciplina se liga à existência dos indivíduos e se articula no espaço e tempo da vida cotidiana: da forma mais concreta possível, em questões fundamentais para a vida coletiva.
Para que as políticas urbanas, o urbanismo e a arquitetura possam se traduzir em projetos adequados à complexidade dos problemas e desafios das grandes cidades, é essencial fomentar um diálogo contínuo entre estudiosos, profissionais, administradores, especialistas e ativistas. É fundamental fazê-lo de forma secular, procurando constantemente novos interlocutores, diferentes pontos de vista e olhando intensamente para as cidades tanto do norte como do sul do globo, para evitar a armadilha localistas.
Com isso, pretende-se esclarecer ainda melhor o campo de experimentação como define Mark Purcell, em um belo texto sobre democracia urbana, quando diz que é essencial a crença ilusória de que as soluções para os problemas são apenas aquelas que podemos ver e imaginar com mais facilidade. Ademais, pretende-se ainda delinear questões mais gerais relativas à relação entre instituições e cidadãos, a fim de fornecer um resumo que destaque as questões críticas e as oportunidades apresentadas por caminhos deste tipo para tornar a participação algo substancial e não meramente ritual ou processual.
Por fim, a partir da expansão da ideia de Canteiro, pretende-se realizar uma leitura dos paradigmas, temas, ferramentas e abordagens a serem utilizadas ao longo do curso de arquitetura e urbanismo, com vistas a criar uma governança colaborativa e experimental, bem como das práticas de participação que a acompanham. É oportuno enfatizar que, para seguir o caminho traçado no exame das dinâmicas relativas aos processos participativos no contexto urbano, devem ser considerados alguns pontos fundamentais para implementar a participação e outorgar aos cidadãos a capacidade efetiva de imaginar o futuro.
Se quisermos que os cidadãos estejam em posição de agir de forma autônoma e contribuir para a mudança social, numa perspectiva entre pares, as instituições devem estar dispostas a assumir a maleabilidade típica de uma abordagem experimentalista. Só dessa forma ocorrerá o enfrentamento das pressões institucionais de cima para baixo e da participação auto-organizada de baixo para cima. Só assim será concretizada uma perspectiva de cidadania baseada na capacidade de idealizar um futuro diferente e melhor: uma ideia que, se cultivada e desenvolvida, pode levar à aspiração e ao ir além, em direção ao que hoje é apenas potencial, mas que poderá ser uma realidade concreta no futuro.

 

 

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