Por Alcimar Luciane Maziero Mondillo
A pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19) escancarou aquele que, talvez, seja o maior dilema do gestor público: como é possível uma administração pública eficiente diante dos entraves burocráticos decorrentes da lei?
Explicando em miúdos:
A Constituição da República, ao tratar da Administração Pública, determinou que todos os poderes (executivo, legislativo e judiciário) de todos os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) OBEDEÇAM aos princípios da legalidade impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37).
Princípios de direito não são meras recomendações, mas verdadeiros valores que devem nortear a interpretação das regras de direito. São mandamentos de otimização que ordenam a melhor aplicação possível do direito dentro da vivenciada realidade.
No caso da Administração Pública, os princípios possuem verdadeiro protagonismo, na medida em que devem nortear a atuação dos agentes públicos, ou seja, daqueles que falam em nome do Estado.
A regra constitucional traduz o anseio do legislador constituinte em romper com comportamentos arraigados na Administração Pública, herança de um Brasil colonial, no qual o interesse pessoal se sobrepunha ao interesse público. A partir da Constituição da República, não há mais espaço para se utilizar da máquina administrativa em benefício privado.
Vale relembrar o histórico discurso do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, em sessão solene que promulgava a Constituição da República, no dia 05 de outubro de 1988:
“A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam”.
Mas em que pese a louvável preocupação no trato com a coisa pública, fato é que as regras às quais a Administração Pública se sujeita acabam por causar entraves na atuação estatal, que se torna lenta e burocrática (no pior sentido da palavra). Agentes públicos se deparam, atualmente, com uma constante colisão entre os princípios administrativos constitucionais, traduzida na seguinte equação:
LEGALIDADE X EFICIÊNCIA
Para se compreender a dificuldade que, muitas vezes, acaba sendo interpretada pelo cidadão como “má vontade” dos entes e órgãos públicos, necessário se faz esclarecer a que se prestam os referidos princípios.
O princípio da legalidade é considerado a base de sustentação do Estado Democrático de Direito. É ele que delimita o poder estatal frente ao cidadão e legitima o ato administrativo.
Se entre particulares vigora a autonomia da vontade (“ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – art. 5º, inciso II da Constituição da República), a atuação estatal deve se limitar àquilo que a lei autoriza ou determina.
E a despeito de todas as regras que legitimam a atuação estatal, exige-se do agente público observância ao princípio da eficiência, que pode ser entendido como a obrigação do gestor público em gerir a coisa pública da maneira mais eficiente possível, utilizando-se dos recursos públicos para prestar serviços com economia, transparência e moralidade.
Diante de um aparente conflito entre princípios (posso adotar uma conduta não prevista em lei para uma atuação eficiente?), há que se ponderar quais são os valores ou interesses aplicáveis ao caso concreto.
Não é demais frisar que enquanto o princípio da legalidade “nasceu” com a Constituição da República, eis que consta da sua redação original, o princípio da eficiência somente foi incorporado ao texto a partir da Reforma Administrativa de 1998 (Emenda Constitucional 19/1998).
Neste sentido, a eficiência seria uma espécie de coadjuvante, que não se sobrepõe aos demais princípios, especialmente não prevalecendo sobre a legalidade Tribunais de Contas e Ministério Público, órgãos com atribuição de fiscalizar a Administração Pública, parecem ser unânimes quanto à prevalência do princípio da legalidade, o que acaba gerando um temor do agente público em adotar condutas inovadoras, eficientes (e, por que não, necessárias), mas não previstas em lei, por receio de eventual punição.
E quando se trata de punição, a legislação é farta: Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal 8.429/1992), Lei de Licitações (Lei Federal 8.666/93), Lei Anticorrupção (Lei Federal 12.846/13), Código Penal, etc…
Fato é que, cotidianamente, se sacrifica a eficiência pela prevalência da legalidade. Se, de um lado, o princípio da legalidade serve de sustentação para o Estado Democrático de Direito, pautando a conduta do gestor público, a quem somente incumbe fazer o que a lei lhe autoriza, de outro lado anula qualquer possibilidade de atuação criativa, inovadora, mesmo que o seu resultado seja eficiente e atenda ao princípio considerado uma das pedras de toque da Administração Pública: a supremacia do interesse público.
Não se pretende, aqui, propor violação a tão necessário princípio – a legalidade deve nortear a atuação estatal, quanto a isso não há dúvidas. Mas como bem ponderado por Aloísio Zimmer Júnior, em relevante obra sobre os cenários de risco e responsabilidade para agentes públicos municipais, já não se mostra suficiente vincular a ação dos agentes públicos aos estritos limites da lei (legalidade em sentido estrito).
O Direito deve ser pensado além da visão tradicional de legalidade, vez que o Estado Democrático de Direito se realiza quando o Estado e suas políticas efetivamente melhoram a vida das pessoas, devendo se prestigiar a conduta que atinge os resultados e metas pretendidos, mesmo que por novos caminhos.
Dessa forma, o que se presencia no cotidiano das administrações municipais é uma verdadeira angústia de agentes públicos que, diante dos riscos permanentes de responsabilização, deixam de agir de maneira inovadora, criativa, pois como pontuamos, os órgãos de fiscalização se detém mais à legalidade em sentido estrito do que ao objetivo primordial da Administração Pública: satisfazer as necessidades da sociedade.
Órgãos fiscalizadores, bem como integrantes do Legislativo e Judiciário, devem analisar a conduta dos gestores públicos não somente pelo aspecto da letra fria da lei, mas principalmente sob o prisma da supremacia do interesse público, considerando a finalidade do ato praticado e seu resultado prático.
Sem essa mudança, continuaremos a ter um Estado Democrático de Direito amparado na legalidade (em sentido estrito), mas sem a eficiência que se espera da Administração Pública.
Quem perde com isso? O cidadão, infelizmente.
A autora
Possui graduação em Direito – Instituição Toledo de Ensino (2002). Advogada desde 2003, atuando nas áreas do direito civil, direito administrativo e direito eleitoral. Professora de Teoria Geral do Direito Constitucional e de Processo Civil do curso de Direito da Faculdade Anhanguera/Bauru (2016-2017). Pós-graduada em Gestão de Organizações Públicas – UNESP (2011). Diretora Secretária Adjunta da OAB/Bauru (2010-2012). Vice-presidente da OAB/Bauru (2013-2015). Presidente do Conselho Regional de Prerrogativas da OAB/SP – 7a Região (2016-2018). Corregedora Geral Administrativa do Município de Bauru/SP (2017-2018). Procuradora Geral do Município de Bauru (2018).
Parabéns Lu não só pelos esclarecimentos mas por chamar a atenção do judiciário quanto a necessidade de decisões que de fato não fiquem limitadas à letra fria da Lei.
Parabéns, Dra Alcimar Luciane! Texto muito esclarecedor. Nem poderíamos esperar menos diante de tal currículo.
Parabéns, Professoea Alcimar.