Concessão de esgoto: especialistas fazem críticas ao edital. Como evitar risco de “envelope marcado” no contrato de R$ 3,6 bilhões?

 

 

Você já deve saber que foi realizada no último dia 26 de setembro deste 2024 a audiência pública da maior concessão de Bauru para repassar ao setor privado as obras e operação do sistema de tratamento de esgoto e drenagem da Nações Unidas. O que a eleição municipal não discutiu (e muito menos a comunidade) é a regra, o conteúdo do contrato em andamento orçado em R$ 3,6 bilhões, em 30 anos. E a consulta pública para dúvidas, questionamentos e solicitações de alteração no edital se encerra nesta segunda-feira (14/10/2024), pelo site oficial da prefeitura (www.bauru.sp.gov.br).

A seguir, o CONTRAPONTO segue o debate, com críticas de especialistas de referência no segmento no País em relação ao edital aberto pela Prefeitura de Bauru. Mas também traçamos indicações de ajustes nos contratos e edital, a partir de diálogos realizados tanto com quem tem expertise no setor privado quanto público (Sabesp). Temos, aliás, especialistas em Bauru (mais de um) e na Capital acostumados com o bastidor, as centenas de artigos e anexos, e o comportamento público e de mercado em concorrências bilionárias como esta. Legislativo, Executivo, OAB, MP e outros setores não vão debater o assunto?

Vamos contribuir aqui, dividindo esta matéria da SÉRIE BAURU – concessão – em duas partes. As críticas de especialistas. Depois, as sugestões para que a administração municipal (e a cidade) observem e não corram o risco de esvaziamento da competição (como aconteceu com Marília – onde somente 1 interessado participou) ou de participação viciada – com prejuízo ao interesse público e à qualidade e capacidade de cumprimento do futuro e eventual contrato.

Anotação: chamamos de “carta” ou “envelope marcado” aqui a disposição de regras que possam gerar prejuízo e ou risco à competição e, assim, ao interesse público.

Este é um tema essencial. Com validade de 30 anos! Vamos lá?

 

CRÍTICAS

Ouvimos o ex-presidente da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon), Percy Soares Neto, até o início deste ano, consultor no segmento. A entidade é constituída de 12 holdings e 114 concessionárias associadas no ramo.

Percy é especialista em economia do meio ambiente, com mestrado pela UFRGS e estágio doutoral na França. Foi coordenador da rede de recursos hídricos da indústria na Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ele vê problemas no edital de Bauru em relação ao melhor formato para o interesse da população. “Ficou claro nessa audiência pública (26/09/2024) que o edital insere indicadores de qualificação técnica e metodologias para avaliação de “currículos” e “indicadores” que são subjetivos o que gera imenso risco da concorrência cair numa armadilha na qual a subjetividade alimenta a chamada “carta marcada”.

Na visão do especialista em saneamento e sócio da Ikigai Consultoria, Percy Soares Neto, “a licitação de Bauru tem de levar em conta o preço. E a parte técnica deve se ater apenas à condição que a concorrente apresenta e sua experiência. Municípios que adotaram esse modelo tiveram propostas mais vantajosas para a cidade e seus moradores”, pondera.

Assim, ele argumenta que a técnica deve ser a condição para habilitar quem tem, de fato, experiência comprovada em obras e serviços no setor de saneamento (e drenagem, no caso de Bauru). E não elemento chave para vencer o edital, como está proposto.

O especialista Percy Soares Neto aponta que o edital deveria focar no preço

Ou seja, Percy considera ruim a regra de envelopes fechados proposta por Bauru, onde uma Comissão de Avaliação (ainda a ser nomeada pela prefeita Suéllen Rosim) vai dar nota técnica (com peso de 70% para a classificação) para quesitos considerados subjetivos. A tarifa (de esgoto a ser paga ao concessionário) tem peso de 30%.

“Um exemplo que ilustra as complexidades de processos mal estruturados como o que se encaminha para Bauru foi o de Marília, que teve a adesão apenas de um licitante no processo. A consequência foi que aquela cidade, que busca conceder o serviço de saneamento à iniciativa privada, teve de receber inúmeras contribuições da Sabesp e dos demais operadores relevantes do saneamento para que fossem corrigidas todas as distorções. Contudo, não foram consideradas as correções apontadas pelo mercado e o projeto seguiu sob o risco que gerou”, abordou Percy.

Na região de Bauru, segundo Percy Soares Neto, o processo licitatório adota avaliação técnica sem critérios objetivos claros para a atribuição de notas, o que gera fragilidades e questionamentos quanto à transparência do julgamento das propostas. Ou seja, em síntese o consultor antecipa que, neste formato, o edital dificilmente escapará de representações (com pedidos de impugnação) no Tribunal de Contas do Estado (TCE). É óbvio até assim observar.

Outra etapa, presente em competições desse porte, é o processo ir parar no Judiciário. A cidade quer e precisa tratar o esgoto. Está nas mãos de Suéllen aperfeiçoar regras e cumprir sua missão de “fazer a cidade avançar”.

Mas, afinal, os apontamentos do especialista podem ser isolados? Pois bem. Não!

O CONTRAPONTO também cuidou de apurar junto a outros integrantes de grupos de porte na área de saneamento e drenagem que estas reclamações integram a lista de requerimentos enviados, desde já, à consulta pública.

Há outros desafios a serem discutidos em relação ao edital de Bauru. “Além disso, há um pedido para que os participantes descrevam o problema enfrentado hoje pelo município, o que, na prática, deveria ser de pleno conhecimento de quem promove a licitação, pois é base para justificar sua realização, conforme previsto pelas normas legais. Tanto Bauru quanto Marília ilustram fragilidades da adoção incorreta do critério “proposta técnica” no julgamento de propostas, resultando em entraves e insegurança jurídica com evidentes prejuízos aos munícipes”, finaliza Percy Soares.

Outros dois especialistas dialogaram sobre o edital, sob condição de anonimato. Eles concordam com o apontamento de subjetividade inserido no capítulo ‘Proposta Técnica’. E avançam. Para um, o cidadão está sendo prejudicado na proposta atual da concorrência, ao colocar no bolso do consumidor tanto a conta das obras de saneamento quanto de drenagem e, ainda, retirar o direito a tarifa mais barata.

É que o modelo adotado pela prefeita Suéllen Rosim inseriu de última hora, para aprovação da lei autorizando a concessão na Câmara Municipal, que a conta do contrato bilionário será paga com tarifa fixa de esgoto de 90%. Mas o concessionário vai receber – pelas obras e operação – o percentual que ele vencer na concorrência (o desconto).

Mas esse desconto não vai para reduzir a conta.  O governo municipal estabeleceu que essa diferença vai para o DAE cobrir custo com seu funcionamento. Lembre-se que já criticamos esse formato: porque a autarquia já será beneficiada com aumento significativo na arrecadação com a troca de hidrômetros (os medidores novos registram consumo de 35% a 40% maior do que os atuais – mais de 100 mil são velhos, com mais de 10 anos de uso).

 

Para outro consultor, além de prejudicar a disputa pelo preço (e privilegiar nota subjetiva em itens técnicos – através de envelope), o edital lançado em Bauru erra ao travar a outorga (valor de contrapartida exigida de concessionário para usar o sistema existente). “O edital apresentado define valor fechado de outorga. Um erro. Tem de abrir e deixar esse valor aberto à disputa. Uma oportunidade única para a cidade alavancar investimentos que tanto precisa junto ao setor privado para resolver outras pendências urbanas”, posiciona.

SAÍDAS 

Baseado nos apontamentos que o CONTRAPONTO já fez quando da publicação do edital (veja link aqui e ao final) e nos diálogos mantidos até aqui com consultores, especialistas, reunimos abaixo, ponto a ponto, sugestões de aperfeiçoamento, qualificação das regras.

Também elencamos dúvidas que permanecem após a leitura dos inúmeros anexos e minutas:

– ao invés do envelope fechado e disputa por técnica e preço, adotar habilitação técnica prévia de execução de serviços comprovados no setor. Disputam o contrato as previamente habilitadas. A regra afasta espertalhões e aventureiros do mercado, citam especialistas.

– estabelecer a concorrência por menor preço (desconto sobre a tarifa máxima de 90% de esgoto), em leilão aberto, com limite também para o percentual mínimo (para evitar propostas inexequíveis), com base no estudo da Fipe (Fundação do Instituto de Pesquisas Econômicas).

– Inserir como critério de desempate o maior valor de outorga (no caso de mais de uma empresa ou consórcio ofertar a tarifa de esgoto mínima estabelecida)…  Ora. Permitam, ao menos, que os “grandes investidores” abasteçam o cofre do Município para novos investimentos!

– o desconto concedido no certame não deve ser receita extra do DAE – mas ir para o consumidor (redução na tarifa do esgoto tratado). O bauruense já paga pelo tratamento de esgoto desde meados de 2006. E não tem sequer a ETE concluída. Dezenas de milhões de Reais estão corroídos pela obra inacabada e deterioração do valor do dinheiro. Sem contar cerca de R$ 60 milhões completamente defasados vindos do governo federal (de R$ 118 milhões, sem correção, desde 2013).

. A autarquia já está sendo (e muito) favorecida com aumento na medição de consumo (novos hidrômetros) e terá 3 anos para se adequar ao novo modelo (prazo de entrega da ETE Distrito e cobrança da nova tarifa). O DAE também já será beneficiado com a transferência de toda gestão comercial (inclusive cobrança e cortes no fornecimento) para o concessionário.

– Além de ter aumento de receita com novos hidrômetros, o DAE não precisará (desde hoje, espera-se!) gastar nada com compra e instalação de hidrômetros. Isso está orçado em R$ 160 milhões, em ciclos de 5 anos, no edital.

– Pelo edital, o DAE não vai mais ter como hoje estruturas de hidrometria, seção, chefia e ainda coordenadorias de corte de fornecimento e não precisará do mesmo porte em setores como Receita, Financeiro, TI e até Jurídico (as cobranças serão só dos grandes e só de dívida de água). A folha com pessoal, insumos e estrutura terá de ser menor do que a atual.

– Não localizamos na papelada regras para fixação de receitas acessórias, ou extraordinárias, e a forma de repartição desses potenciais ganhos extras pelo concessionário. Tem de inserir e o mote é fixar 50% para cada lado. Quanto mais eficiente e bom prestador for o concessionário, melhor para o usuário e o DAE. O produto do tratamento do lodo final pode ser vendido como adubo. Por exemplo. São 80 toneladas/dia, conforme o projeto.

– a Comissão de Avaliação deve ter atribuição de gerenciar e dar andamento ao processo, mas sem o papel (difícil e temerário) de ter de dar notas para 11 itens subjetivos (nota técnica de A a K – anexo). Se ficar o grupo: quem serão os especialistas que vão assumir esse papel?

– O edital não deve exigir conteúdos absolutamente “fora de padrão”. Qual o interesse em dar nota para avaliação do Plano de Saneamento e da situação da ETE, por exemplo? A perícia judicial e o laudo de vistoria (antes apresentado) sobre o estado da obra compõem detalhes robustos sobre a má qualidade do projeto executivo da Estação do Distrito e, ainda, põem em dúvida a durabilidade de parte do que está instalado no canteiro de obras.

Cada empresa ou consórcio que assuma, de fato, o risco de entregar a ETE, fazer funcionar e operar o sistema.

Estas foram, aliás, as premissas que a prefeita Suéllen Rosim e a Fipe utilizaram para defender o edital!

DÚVIDAS e +

– Na publicação oficial, item Contrato de Interdependência, não há artigo que estabeleça que o DAE vai receber como receita adicional o valor referente ao desconto que o concessionário vai ofertar (regra de competição – preço). Indagamos esse item junto ao executivo da Fipe, Mário Valério, na audiência pública. Ele disse que o item tem de estar no “contrato de interdependência”.

– Não encontramos nas minutas atribuição relacionada a gestão, controle e faturamento de poços artesianos.

– A princípio, temos dúvida no confronto de atribuições trazidos no texto do item 5.5 vi com o descrito no 8.2 (ambos do contrato de interdependência). O 5.5 (abaixo) estabelece que a concessionária ficará responsável pelos cortes de fornecimento…

– já no mesmo contrato (minuta) o item 8.2 diz que: o DAE continua a executar novas ligações de água, bem como “pedidos de religação, supressão ou suspensão das ligações do sistema de água“.  O concessionário sempre quer ter controle total sobre gestão comercial, inclusive os cortes. Tanto que em outro item o privado é quem executará judicialmente devedores (e não mais o DAE).

– A nota técnica tem peso de 70% e, para classificação final de um edital de R$ 3,6 bilhões, será somada ao maior desconto na tarifa (peso 30%). O edital exige 11 itens (de A a K) mas não diz como será atribuída a nota por item. Os itens são bem diferentes entre si. Se a nota for na base do “geral” (uma só), a subjetividade fica ainda mais latente. Esta questão não vai escapar de pedido de impugnação, apuramos.

– As Notas Técnicas parecem, em alguns itens, conteúdo de monografia e não regra objetiva de edital. O item ‘A’ pede avaliação crítica do Plano Municipal de Saneamento. O item “B” avaliação do contexto urbanístico, social e econômico de Bauru, índice de cobertura do esgoto, conteúdo sobre tendência de urbanização, adensamento e expansão da cidade. Precisa explicar que isso é subjetivo – por demais?

– Outro item pede “rotinas de administração” do concessionário interessado. Alguém considera mesmo que esses itens não serão questionados?

– Seguros: consultamos um dos maiores especialistas do País na área. Retorno: para o seguro do contrato e primeira etapa (construção da ETE até o terceiro ano de contrato), os parâmetros e exigências estão de acordo. Não há, porém, garantia de que isso valha para a etapa seguinte (obras do piscinão e macro e microdrenagem da Nações Unidas)…

É um contrato bilionário, com efeito sobre várias gerações. Vamos esclarecer dúvidas, aperfeiçoar, ajustar, pelo bem da cidade?

Com a palavra a prefeita reeleita Suéllem Rosim…  

 

LEIA MAIS sobre o tema AQUI:

https://contraponto.digital/municipio-abre-regras-para-concessao-de-r-36-bilhoes-veja-pontos-essenciais-que-voce-precisa-saber-e-discutir-na-primeira-e-maior-concessao-da-historia-de-bauru/

 

 

3 comentários em “Concessão de esgoto: especialistas fazem críticas ao edital. Como evitar risco de “envelope marcado” no contrato de R$ 3,6 bilhões?”

  1. Coaracy Antonio Domingues

    A INSEGURANÇA JURÍDICA E TÉCNICA É TAMANHA, QUE DUVIDO QUE OS GRANDES PLAYERS DO MERCADO DE CONCESSÃO DO SANEAMENTO ACEITEM O EDITAL…
    Denúncias ao TCE e ao MPE virão !
    De “caso pensado” ou não, mais uma vez, assinaram o atestado de NEGLIGÊNCIA E INCOMPETÊNCIA, JUNTAS !

  2. Ante a situação posta, é válido indagar se a prefeita Suellen, ao propor políticas de tarifas de água, efetivamente atinge o propósito desejado ou apenas desvia o foco das reais questões sobre o uso racional e sustentável dos recursos hídricos. É razoável manter uma tarifa de água em patamar acessível, quando, na prática, observamos uma cultura de desperdício que inclui a lavagem de calçadas e quintais mesmo em áreas de abastecimento crítico? Não seria a tarifa um mecanismo adequado de controle para desestimular o uso irresponsável?

    A Lei Ordinária nº 6.703/2015, que concede desconto para imóveis com vazamento interno, merece revisão. O benefício conferido por esta norma é justificável frente ao princípio de responsabilidade pelo consumo? Se o próprio consumidor, por negligência, permite o desperdício, por que o custo do desperdício deveria ser mitigado pelo poder público? Poderia, acaso, qualquer outra prestadora de serviços ou fornecedora de bens repor o valor de produtos danificados após o consumo? Imagine-se, por exemplo, o consumidor que perfura um galão de água mineral em sua residência e, ainda assim, pretende exigir ressarcimento do mercado. Não seria análoga a situação de uma pessoa que abastece seu veículo e, ao derramar combustível por descuido, exija isenção do posto de combustíveis?

    A água, recurso natural finito e cada vez mais escasso, demanda medidas mais eficazes contra o desperdício. A adoção de uma tarifa proporcional ao consumo – com diferenciação justa para a população vulnerável – é, talvez, o caminho mais racional para induzir o uso consciente, ao mesmo tempo que preserva o acesso ao bem por aqueles que dele mais necessitam

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