A cena urbana do Centro de Bauru costuma repetir personagens na paisagem. Isso é comum. Em todo lugar. Encontramos, de segunda a sexta, de manhã, quase sempre os mesmos bauruenses indo para o trabalho. O barbudo de óculos escuros em formato redondo costuma estar quase sempre no mesmo cruzamento com sua picape 4×4 branca. Apressado. As mulheres de uniforme azul recolhem toda manhã lixo na calçada em piso todo quebrado do Plantão Policial.
– Bom dia…! Bom dia, respondem. Sempre.
Tem dia certo para os frequentadores da Igreja Universal comparecerem ao culto com flor à mão. Os rapazes do moto-táxi estão sempre no mesmo banco da praça Dom Pedro I. Só se ajustam em abrigo na chuvarada de janeiro e fevereiro… A Kombi amarela no “meio da quadra”, logo após a faixa de pedestre do Calçadão da Batista está lá, sempre. Usa a vaga de estacionamento como sua, em todo o horário comercial. De vez em quando passa um agente do GOT (agente de trânsito). Mas nunca multam… Já fiz matérias disso…
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Exatamente pela repetição de personagens na mesma paisagem é que o Voyage escuro (seria cinza, ou grafite) chamou a atenção. O ano novo deu sua largada e a primeira vaga, do lado do portão de entrada para usuários do estacionamento do Legislativo, passou a ser, sempre, ocupada pelo mesmo carro.
Quem frequenta o Centro bauruense, todo dia, sabe que as vagas de estacionamento (rotativo) são disputadas. Logo, conseguir o mesmo lugar todo dia é além de proeza. O dono do Voyage escuro, placas de Bauru, só podia aparecer por lá antes, ou junto com o cantar do galo…. Como diria em Itaberá (SP), minha terra natal.
A primeira semana de janeiro findou. E lá estava o Voyage. Mas os funcionários das imediações, lojistas, comerciantes, servidores do Legislativo, do Plantão Policial, ao lado da vaga, na Rua Azarias Leite, saiam para o almoço, retornavam…. E lá continuava o Voyage.
E o homem dentro! Não colocava a “cara pra fora nunca”. Mais do que isso: em quatro semanas de observação o que sempre vi era o homem do Voyage observando o Centro.
Sempre sob o ângulo de seu para-brisa, de onde ele só poderia ver a movimentação da Rua Azarias Leite à frente, até o cruzamento da Avenida Rodrigues Alves, talvez. Ou pelo lado, pelo vidro da porta do motorista. Mas ficar por ali dando “bandeira” poderia ser arriscado.
Quem frequenta o Centro bauruense, todo dia, sabe que a praça é local de convivência também de pessoas em estado de dependência química. São uns 7 ou 9 cidadãos em estado de vulnerabilidade social. A Sebes já foi lá, algumas vezes. Cadastrou, conversou (abordagem direta). Mas continuam por lá. Sem perspectiva.
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Final do turno. Por que o homem do Voyage escuro sempre estava lá, na mesma vaga? Perguntamos aqui e acolá, fizemos aproximação, aos poucos. Soubemos, antes, que ele não “falava com ninguém”… E, se abordado, respondia “quase nada…”.
Estaria aquele cidadão a serviço de algum observador? Ele estava sempre bem vestido. Camisa, calça, ou bermuda sarja e camiseta. O carro aparentava bom estado de conservação, embora fosse de um modelo já “fora de linha”….
Curiosidade e observação são alimentos do jornalismo. Mas o desafio adicional, para elucidar o mistério do homem do Voyage, poderia estar exatamente na condição de “controle de ansiedade”, da precipitação… Então, fui atrás de alguma informação colateral.
Quem frequenta o Centro bauruense, todo dia, sabe que é bastante movimentada a entrada do Plantão Policial, há poucos metros da vaga onde permanecia o Voyage. Mas os policiais militares chegam, e saem, em rotinas de conclusão de ação preventiva, com apresentação de ocorrência. Perguntei a profissionais da Polícia Civil. Nada!
Do lado do carro misterioso, na guarita da Câmara, o servidor que reveza o horário de troca de turno também pouco sabia. Uma funcionária contou que uma assessora parlamentar teria tentado falar com o homem do Voyage, na semana anterior. Mas pouca informação obteve. Seu Pedro, jardineiro da praça há anos, também queria saber por que o homem do Voyage estava sempre lá…
Soube que a assistência social da Secretaria do Bem-Estar Social (Sebes) foi acionada, levantei… Mas o homem continuava lá. Na mesma vaga.
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A abordagem
Testei, aos poucos, a informação de que o homem seria arredio a conversar. Um aceno despretensioso na hora do almoço. Em outro dia, um “boa tarde” ao “observar que ele estava observando quem passava”. Foram alguns dias assim…
Alguns dias depois, já foi possível chegar, cumprimentar e sair. Depois de mais uma semana ele sabia onde eu trabalhava por ali… etc. E eu esperando momento mais adequado para saber dele…
Até que, na terça-feira, já início de fevereiro, “peguei” o homem do Voyage com a porta do motorista aberta. Ele sempre lá dentro. Acenei com a mão, mais uma vez. Ele retornou o cumprimento. Foi a chave para buscar o diálogo...:
Reproduzimos o arquivo de áudio, a seguir, e o texto do conteúdo básico da conversa. O volume está baixo:
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Nélson Itaberá: – Moço, boa tarde.
VG: Boa tarde.
– Tudo bem?
VG: Tudo.
– Você está precisando de alguma coisa?
VG: Eu tô!
– O que o senhor está precisando?
VG: Dois milhões de Reais.
– Dois milhões?
VG: É! Dois milhões.
– Opa. O senhor tem bom humor.
VG: Claro. (ri…)
– Eu vejo o senhor sempre aqui neste local, trabalho ao lado. O senhor está sempre aqui, por quê?
VG: Eu fui posto pra fora de casa.
– Como assim?
VG: Maria da Penha.
– Está respondendo a processo?
VG: Ainda não.
– Ué. Como assim? O senhor tem casa?
VG: Tenho casa, mas a mulher me processou. Eu não posso ir lá.
– Que problema o senhor teve com ela, agressão?
VG: Não, eu não fiz nada. Eles é que me colocaram pra fora. E dai me processaram e eu estou aqui.
– Mas por que aqui na frente da Delegacia, todo dia?
VG: É mais seguro aqui né.
– O senhor é casado com a mulher há quanto tempo?
VG: Ah…. desde 89… Ai nós separamos. Divorciamos. Ai resolvemos voltar.
– Tá.
VG: Voltamos. E ai não deu certo de novo.
– Separou faz pouco tempo?
VG: Faz uns seis meses, acho. Legalmente desde 2006. Ai nós votamos em 2009. E agora voltamos a separar de novo.
– Entendi. Mas teve briga então? Algum entrevero?
VG: Ah.. só verbal. Xingos. Ai ela arrumou outra pessoa e está lá com ele na minha casa.
– O senhor tem casa onde?
VG: Perto da Vila Giunta. Mas ali eu conheço como Jardim Jussara. Ali perto da (rua) Bernardino de Campos, por ali.
– O senhor está vindo todo dia aqui…
VG: Eu fico aqui 24 horas. Todo dia.
– E como o senhor se vira aqui, sem banheiro, na rua, dorme no carro?
VG: Durmo aqui. Não saio daqui (do carro). Banheiro eu tento dar um jeito aqui, ao redor. Eu fico quieto aqui. O dia todo.
– O senhor está trabalhando? É aposentado?
VG: Sou aposentado por invalidez. (ele mostra as pernas, quase sem movimento, sentado ao banco do motorista). Por enquanto eu tô aqui. Como por aqui.
– Está machucada a perna?
VG: Rapaz eu tenho paralisia, do quadril pra baixo. Ai me aposentei com a doença. Agora estou aguardando este processo ai da Maria da Penha. Mas não tenho como entrar em minha casa.
– Mas vai ser difícil, porque notificação contra o senhor vai lá para sua casa?
VG: Vai pro meu endereço. Está tudo meu lá na casa. Vou aguardar uns dias e depois ver uma quitinete para eu alugar.
– Entendi. Sua ex ou esposa sabe que o senhor está aqui?
VG: Não sei.
– O senhor tem filho?
VG: Tenho. Mas está lá em Madri (Espanha). Há 8 anos já. Tenho outro que é enteado. É só isso.
– Qual o nome do senhor?
VG: Walter.
– Valter do que?
VG; Galhardo Filho.
– Valter com “V” ou com “W”?
VG: V!
– Tá bom, seu Valter. Boa sorte para o senhor.
VG: Eu que peço que você me ajude ai.
… …
No dia seguinte, esta semana, fui até o senhor Valter e comentei da necessidade de reportar seu caso ao serviço de Abordagem Social da Prefeitura. Ele concordou, informou seu telefone celular e CPF…
O senhor do Voyage escuro não estava, na manhã de hoje, no mesmo lugar. Apurei no Judiciário, Polícia Civil e não consta nenhum processo em nome deste senhor até esta data…. Uma assistente social foi ao local, o orientando. Ele aceitou ser recolhido em serviço de passagem.
Quem frequenta o Centro, todo dia, sabe que a vaga de estacionamento rotativo é ocupada sempre por diferentes carros…
Parabéns pela matéria.
Parabéns pela preocupação com um semelhante anônimo.
Por mais pessoas preocupada com o outro.
Que ele tenha melhor sorte daqui para frente.
Excelente reportagem. Tem muitos personagens icônicos no dia a dia de Bauru. Na periferia também.
Rapaz…. Boa sorte pro Sr Valter, hein!?! Cada uma que acontece na vida das pessoas… Boa sorte mesmo…
E parabéns por ter conseguido abordar e ajudar!