O Ser e o Tempo: indagações às vésperas da Terceira Idade

Ao sr. Batara, que partiu sem se despedir

Ao completar 50 anos no início do século XXI, o cantor e compositor paulista Arnaldo Antunes (1960) problematiza “o medo de envelhecer” na música de título quase homônimo. No século passado, o francês Jacques Brel (1929-1978), em La chanson des vieux amants, resgata a complexidade da velhice, suas facetas, contradições e paradoxos; num jogo de palavras, Brel legitima o termo velho (vieux), sem substituí-lo por outros mais amenos e polidos, nos múltiplos processos e caminhos do envelhecimento.
Com os dois exemplos acima, estamos no Brasil pós-pandemia, com previsões de aumento real da população idosa, e na França da intelectual Simone de Beauvoir, que escreve de forma incisiva e quase peremptória: «Para a sociedade, a velhice aparece como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual não é bom falar».
Tendo encerrado o capítulo do “trabalho”, típico da segunda idade, e catapultado, às vezes, violentamente e, outras vezes, empurrado suavemente para a terceira idade, o sujeito pode encontrar-se “de mãos atadas”. Fazer nada? Fazer alguma coisa? Algo como antes? Algo novo? Algo para si próprio? Algo para os outros? São muitas as questões que surgem nesse “novo tempo”.
Contrariando a afirmativa de Madame Beauvoir, inspirando-se no trabalho e trajetória de Ecléa Bosi (1936-2017) e, sobretudo, no limiar de entrar na denominada Terceira Idade, alguns questionamentos parecem necessários. Uma análise rápida nos faz pensar que, seja no Brasil ou na França, a chamada Terceira Idade ainda é vista como a fase das perdas e privações, da involução irreversível das funções psíquicas e de um período caracterizado por dificuldades e sacrifícios, uma vida de menor qualidade e valor.
O divisor de águas entre a segunda idade e a terceira, entre o “tempo para trabalhar” e o “tempo para quê?”, ainda afeta profundamente a personalidade de muitos indivíduos, criando um sulco na existência e coloca o psiquismo diante de múltiplos caminhos: continuar, parar, reiniciar, aonde ir? Assim, os grandes temas estudados pela filosofia insinuam-se psicologicamente (embora permaneçam desconhecidos no todo ou em parte): O Ser confronta o Tempo (Martin Heidegger) e o Nada (Jean-Paul Sartre). Quer percebam ou não, ninguém pode escapar desses momentos que giram em torno do eterno problema de uma busca contínua.
Na nossa realidade sociocultural e territorial, os idosos constituem hoje uma parte significativa da população, a ponto de representar um interlocutor essencial para questões relacionadas com políticas sociais e de saúde. À escala global, a parte superior da pirâmide demográfica registra um aumento notável e, nos próximos 20 anos, a proporção de pessoas com mais de 65 anos crescerá mais rápido do que qualquer outra faixa etária: em 2050 atingirá 21% da população total, superando em número a faixa com menos de 15 anos.
Analisando de forma breve algumas expressões artísticas contemporâneas, como as linguagens literária e cinematográfica, percebe-se uma clara demonstração da capacidade de restaurar as várias faces da velhice e as diferentes fenomenologias do envelhecimento.
Para alguns autores, – a velhice não existe, mas existem velhices, no plural, e sobretudo, velhos e velhas, cada um com sua própria jornada e sua própria particularidade. Portanto, ainda que, para todos, a velhice termine com a morte, os caminhos para enfrentá-la são diferentes. Autores afirmam que, são conhecimentos científicos especializados como a geriatria, a neurologia, a psiquiatria ou a psicologia que adotam uma linha de interpretação mais linear e, em alguns aspectos, unívocos da velhice, destacando mais os aspectos deficientes e ausentes, e a decadência, mensurável e quantificável.
Tal risco já havia sido destacado nos Estados Unidos, no início da década de 1990, pela conhecida militante feminista Betty Friedan (1921-2006), para quem: «A velhice não é, portanto, avaliada pelo que é, mas sim pelo que não é.” Não é por acaso que muitos utilizam o termo “velhice”. No singular, este transmite a ideia e representação de um único tipo de idoso que facilmente cai na categoria médica e sociológica. Daí os preconceitos e estereótipos, bem como os silêncios, as remoções e censuras que dizem respeito a essa última temporada de vida, sobretudo quando se refere ao mundo interno, emocional e afetivo de quem hoje vivencia a velhice.
Vale ressaltar ainda o ponto de vista do etnólogo e antropólogo Marc Augé. No texto Une ethnologie de soì. Le temps sans âge (2014), Augé sublinha que assim como ninguém está sozinho nas outras idades, também não se pode pensar diferente na terceira idade e, assim, pode-se pensar na velhice como uma das idades da vida que nos preocupa, não tanto apenas no que se refere à sucessão precisa e pontual dos anos que passam, mas no fato de repensar o passado, revivê-lo, recriá-lo, bem como formular hipóteses sobre o futuro, deixando “a imaginação brincar com tempo” (p. 67): uma operação de criatividade vital em todas as estações da vida, mais ainda na última.
Seguindo nessa direção, pode-se afirmar que o andar fica mais lento, a pele perde sua elasticidade, os braços perdem força, a memória começa a falhar, mas o destino da alma pode ser diferente e capaz de construir intimidades, precisamente porque nessa fase, pode-se viver vitalmente o tempo da pausa, da concentração em si próprio, da recordação e das relações. Pode ser uma época da vida ainda construtiva e a ser “inventada”, como nos lembra Betty Friedan (1994).
Não se apropriar das dimensões mais internas da vida emocional, afetiva e das experiências profundas de quem vive a última fase da vida, a nosso ver, significa ter uma visão parcial e redutora dos processos de envelhecimento com o consequente risco de nos relacionarmos com a representação excessivamente prejulgada dos idosos, herdada especialmente das linguagens midiáticas (mas também cultas ou científicas) que, nem sempre, tratam da velhice e suas histórias de forma criativa e começam a transmitir estereótipos estéreis, quando não até mesmo prejudiciais.
Portanto na velhice a melhoria não é obrigatória, mas é possível (e até provável). Obviamente, colocando o “sopro vital”, pois melhorar significa mudar, crescer, nascer para uma nova vida.

Prof. Dr. Adalberto da Silva Retto Júnior
Professor do Departamento de Arq. da Unesp Campus Bauru