As crises econômicas dos anos 2000, a pandemia da Covid-19 e a explosão da emergência climática aceleraram um processo crescente de conflitos internacionais que, em meados da primeira década do novo milênio, já havia dado seus primeiros e preocupantes sinais. Dentro desse cenário, está o projeto de um corredor transoceânico envolvendo a articulação de modais ferroviários sul-americanos, buscando revolucionar a logística entre a América do Sul e a Ásia, de modo a encurtar distâncias marítimas entre os portos dos dois continentes, consolidando a China como grande parceiro comercial brasileiro e sul-americano.
Entretanto, vale ressaltar que essa articulação entre os oceanos Atlântico e Pacífico ganhou força no início do século XX (mais precisamente a partir de 1920), quando o Oceano Atlântico ratificaria sua importância como epicentro da modernidade, ao sinalizar que a implantação das redes ferroviárias ligaria o mundo em cinco dias (três de navegação), como demonstra a imagem do projeto apresentada no Congrès International des Chemins de Fer L’Ibero-Afro-América, em Berna 1910. (RETTO JR., 2003).

Nesse contexto, é importante relembrar o projeto da Ferrovia Transcontinental Santos–Arica, ligando os dois oceanos mencionados a partir da junção de ferrovias brasileiras, bolivianas e chilenas. Idealizado desde o século XX, o projeto foi descrito por Schiavon (2023) no livro intitulado “Modernidade e comunicações: meios de transporte e território”.
No primeiro momento, o sistema ferroviário da região oeste do Estado de São Paulo impulsionou o surgimento, a reestruturação e a morte de núcleos urbanos, uma maior concentração populacional em áreas urbana, além de rápidas alterações na paisagem, como demonstra o estudo do geógrafo francês Pierre Monbeig, na obra Pionniers et Planteurs de São Paulo, que in primis estudou tal processo de urbanização, que colocaria a cidade de Bauru como centro nevrálgico de um comércio global.
A nova proposição criaria oportunidades para o desenvolvimento da infraestrutura logística, o que reforçaria a oposição entre o Norte e o Sul do mundo através de linhas claras de demarcação: de um lado, o velho bloco euro-atlântico; e de outro lado, um conjunto de atores heterogêneos, da China à Rússia, da Índia às Monarquias do Golfo, dos países africanos aos asiáticos.
Ressalta-se, que nos primórdios das navegações e da ampliação das relações comerciais internacionais, as estratégias de articulação entre a navegação e os modais ferroviários colocaram o Oceano Atlântico como um ambiente de grande importância estratégica, revelando hegemonias em meio ao desenvolvimento do capitalismo.
A historicamente tão sonhada articulação sul-americana parecia possível, a partir do comércio internacional de produtos de base, manufaturas e dinamização de fluxos financeiros, consolidação de transportes internacionais e estabelecimento de relações econômicas entre os países subdesenvolvidos, buscando seu fortalecimento e as garantias de competitividade diante dos ambientes desenvolvidos. A concretização desse processo se daria, por meio da garantia de fixação das máximas taxas de autossuficiência em meio aos países desenvolvidos, garantido a partir do acesso livre aos mercados pertencentes aos países subdesenvolvidos, viabilizando a circulação de produtos de base. Também caberia aos países desenvolvidos, o financiamento internacional de estoques destinados a estabilizar a oferta desses produtos.

No quadro histórico da crise do sistema interamericano, pode-se afirmar que os países sul-americanos, em maior ou menor escala, ainda se defrontam com os mesmos problemas históricos em relação ao modelo econômico aplicado ao seu sistema produtivo, e consequentemente de articulação de modais logísticos e de transportes.
Em meio às promessas recentes, dois trechos de articulação ferroviária se destacam no Brasil: o Corredor Ferroviário Bioceânico do Eixo Capricórnio e a Ferrovia Transoceânica, ambos direcionados a conectar porções do território central brasileiro a portos das regiões Sul e Sudeste, buscando reorganizar a ampla dependência do porto de Santos. Assim, seria ampliada a interligação dessas regiões aos novos pontos de desenvolvimento da Marcha de Interiorização das principais commodities brasileiras (minério de ferro no Pará e a soja na porção centro-oeste), em busca de portos estratégicos à economia global.

A logística do Corredor Ferroviário Bioceânico do Eixo Capricórnio oferece, para sua área de influência, grande disponibilidade de produtos primários, capazes de viabilizar investimentos e a operação comercial, a saber: derivados do complexo da soja (grão, farelo e óleo), cereais (milho, trigo e sorgo), complexo suco-alcooleiro (álcool e açúcar), biocombustíveis, derivados de petróleo, produtos da cadeia dos fertilizantes (NPK – nitrogênio, fósforo e potássio), minerais metálicos, produtos siderúrgicos e contêineres.
Outro projeto alvo de especulações é a Ferrovia Transoceânica, que conta com promessa de investimentos chineses. O projeto busca encaminhar para os portos de Ilo (Peru) e Arica (Chile) a soja produzida na região Centro-Oeste do Brasil, como alternativa para desafogar portos brasileiros, sobretudo os de Santos e de Paranaguá, direcionando as mercadorias para portos do Rio de Janeiro. Quanto ao desenvolvimento desse projeto, o Governo Brasileiro anunciou, em 2015, a segunda etapa do Programa de Investimentos em Logística (PIL – Ferrovias) que incluía, no programa, a proposta de construção da Ferrovia Transoceânica, presente no Plano Nacional de Viação – PNV desde 2008, identificada pela sigla EF-246.
Em outros momentos, a mesma estratégia também fora mencionada como Ferrovia Transcontinental e Ferrovia Bioceânica, tendo como previsão a interligação entre o litoral norte do Rio de Janeiro (região de Campos dos Goytacazes), atravessando todo o território nacional, até a conexão com a malha ferroviária do Peru. Nessa proposta, em território brasileiro, a ferrovia atravessaria além do Estado do Rio de Janeiro, os Estados de Minas Gerais (tendo como destaque a cidade de Corinto), Goiás (destacando Campinorte), Mato Grosso (destacando a cidade de Lucas do Rio Verde / Água Boa / Sapezal), Roraima (Porto Velho / Vilhena) e Acre (Rio Branco / Cruzeiro do Sul e Boqueirão da Boa Esperança, esta última na fronteira entre Brasil e Peru).

O objetivo era criar uma rota ferroviária estratégica de escoamento da produção, via Oceano Pacífico, para os mercados asiáticos. A construção da ferrovia seria compartilhada entre os governos do Brasil, Peru e China com financiamento do Banco de Infraestrutura Chinês-AIB. Em 2015, a proposta se caracterizava como um ambicioso plano chinês, cujos investimentos seriam realizados na América do Sul.

Os exemplos aqui apresentados demonstram que as novas commodities globais continuam a impulsionar a expansão da modernização e espacialização territorial, dando continuidade aos ideais lançados pela “Marcha para Oeste” do século XX. O crescimento econômico e a crescente urbanização, muitas vezes desordenada, acompanham as rotas de expansão de produtos como milho, soja, minérios dos mais variados tipos, produzidos até então nos sertões pouco articulados à dinâmica global, mas que encontram, em projetos de caráter transcontinental, a possibilidade de otimização de sua comunicação com o globo.
É por demais evidente que o conflito político internacional é, antes de mais nada, conflito econômico e que, portanto, o comércio global é a arena onde a competição ocorre e, no futuro imediato, de forma ainda mais direta e virulenta. Na era da “guerra híbrida” ou ainda, para colocar esse conflito na taxonomia chinesa de “Guerra Ilimitada”, estamos testemunhando a militarização de instrumentos econômicos e comerciais. A guerra, portanto, antes de ser militar, é comercial. São sonhos, promessas e realizações ligados a eixos logísticos que ainda seguem propostas que pouco se alinham às dinâmicas locais e regionais, e ainda concentram seu foco à viabilização do transporte dos ciclos de commodities globais.
Os autores
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp Bauru), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
Taís Schiavon é Arquiteta e Urbanista pela UNESP, campus Bauru. Doutora e Mestra em História, Gestão e Valorização do Patrimônio Industrial pela Universitè Paris 1 Panthéon Sorbonne, Paris, e Universidade de Évora, Portugal. Bolsista pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) no projeto Temático: Saberes Urbanos na configuração e re-configuração das cidades formadas com a abertura de zonas pioneiras no Oeste do Estado de São Paulo (orientação professor Adalberto da Silva Retto Júnior, UNESP-Bauru).