Por que o trem apita em festa ao passar pelo Mirante Ferroviário em todo 17 de julho?

Vista aérea da formação dos espaços de lazer da antiga Vila de Triagem, no Jd. Guadalajara

Em todo 17 de julho um time de trabalhadores calça as chuteiras e veste tricolor, como se fossem a versão contemporânea uniformizada que assumia a peleja nas oficinas da Vila de Triagem. O trem não apita mais por lá. Mas a data está viva. O apito não mais vem da locomotiva. Mas da memória que entra em campo, ainda que em homenagem, para celebrar os feitos do time. Não deixar a jornada se apagar é vitória certa. O trilo do árbitro ecoa do alto, do gramado, para celebrar as glórias do escrete vestido de preto, branco e vermelho. Eles se orgulham de estarem no mesmo espaço por onde desfilaram inúmeros craques.

Foi daquela cabine de imprensa, que ainda está lá, resistente ao tempo, que o cronista Walter Lisboa batizou os jogos no tradicional campo de futebol amador de Bauru na Vila de “Mirante Ferroviário”. E lá se vão 68 anos de jornadas esportivas.

Saudosismo? Imaginação? Não! Absolutamente! História! E mesmo que os jornais modernos não dediquem mais espaço para crônicas, é louvável algum tom de poesia para escrever algo sobre o aniversário de criação do Grêmio Recreativo Esportivo Triagem (GRE) de Bauru. O único bicampeão estadual de futebol amador da cidade pela Federação Paulista de Futebol (FPF). Na ocasião, fazia 52 anos que a Sem Limites tinha tido um time capaz de levantar a taça. Isso com o então Bauru Atlético Clube (ex-Luzitana), em 1946, onde jogava Dondinho, pai de Edson Arantes do Nascimento, aquele que recebeu das ruas e campinhos de Bauru o apelido de Pelé.

Placa de operação da ferrovia

Se os mesmos trilhos da história trouxeram para cá o rei do futebol, nada mais é necessário justificar para celebrar as glórias do Triagem. Em 1997, campeão estadual amador. Bateu o time da Associação Bariri. E, em 1999, o timaço bicampeão, invicto. Nesta peleja, venceu o Social Econômico de São José dos Campos. Os recortes da batalha, no terceiro jogo, em Piracicaba, mereceram destaque (abaixo) no principal impresso local, o Jornal da Cidade.

Mas não é de bom tom rebobinar o tempo da bola sem compreender o que era a então Vila de Triagem.

Estação de Triagem Paulista com trem de passageiros tracionado por locomotiva a vapor em bitola métrica

O Grêmio Triagem nasceu da reunião de funcionários da ferrovia. O Jardim Guadalajara abrigou as maiores (e melhores) oficinas de manutenção e recuperação de locomotivas e vagões do Interior do País. A Vila de Triagem tinha três oficinas completas. O matagal, hoje, encobre o que restou da plataforma com pé direito avantajado (foto no final). Mas a Estação de Triagem Paulista com trem de passageiros tracionado por locomotiva a vapor em bitola métrica foi inaugurada ainda em 19 de junho de 1937.

Em 17 de julho de 1958 nasceu, de pleno direito, o Grêmio. O estatuto, mantido com carinho pelo ex-morador da Vila, funcionário da companhia e atual presidente do Cabo Triagem, Arnaldo Regalim, descreve que o objetivo principal era “reunir o pessoal”. Para lazer, encontros, ambiente familiar, agenda social. E assim foi. A antiga sede do clube abrigava festas, bailes. Os homens se vestiam de mulher para brincar os carnavais daquele tempo (foto abaixo).

A COLÔNIA

A colônia era composta por 72 casas alugadas para os funcionários de Triagem. A Vila contava com infraestrutura básica de água, esgoto e energia elétrica. O sistema construtivo das casas era em painéis pré-montados de madeira parafusados. A fundação em baldrames. Apenas a cozinha era construída em alvenaria. O então menino Regalim, hoje o Nardão presidente do Clube de Amigos da Bola (Cabo) e que ainda joga toda quarta-feira por lá, conta que perguntara aos pais por que, no meio de tantas vigotas, as tábuas de madeira de lei vinham numeradas (algarismo romano). “Era pra encaixar uma na outra. A Vila era itinerante, de acordo com o planejamento das obras. Assim veio de Itirapina, Pederneiras. Montava e desmontava. Material de primeira”, conta Nardão.

Como levantaram pesquisadores dessa história de progresso – como parte do investimento nacional estratégico que fez de Bauru o maior entroncamento ferroviário da América Latina -, a Vila não era para ter sido erguida em Triagem. O caminho projetado para os trilhos iria para Piratininga. Mas um tal de Azarias Leite, pioneiro na formação de Bauru, “intercedeu” junto aos chefões da Ferrovia designados pelo Império, em um encontro em Mineiros do Tietê. E o traçado mudou para Bauru. Azarias, que foi homem público, vereador, ainda do período da Vila de Espírito Santo da Fortaleza, foi assassinado pouco tempo depois.

Tijolos da ferrovia no Museu Histórico e Militar de Bauru

E a Vila cresceu. Além das casas, ela tinha escola, o clube, um campo de futebol e dois de malha. Regalim estudou até a terceira série na escola da própria Vila, de nome Carlos Chagas. Mas, além de apreciar bicudões na bola de capotão, o local era palco de agendas especiais, como apresentações de catira – dança típica do interior paulista – e festa baile. Uma última casa de tábua da antiga Vila ainda está lá (foto).

Assim, de origem ferroviária da antiga Companhia Paulista de Estrada de Ferro, nasceu no dia 17 de julho o Grêmio Triagem. O clube de dança de salão encampou o futebol do antigo Clube Ferroviário. As tratativas foram do dia 13 a 17. Quando assinaram a medida.

Hoje, a sede do Triagem abriga o melhor gramado para prática do futebol da várzea bauruense. O estádio do Mirante serviu a jogos dos garotos da Copa Big Boys nos últimos anos e, em 2025, continua sendo o palco preferido das equipes que disputam as Ligas Amadoras da cidade, inclusive do campeonato organizado pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (Semel). O espaço do Triagem também recebe garotos da Escolinha de Futebol Foguinho, atual secretário de Esportes do Município.

Presidentes como Antônio Rigo (o primeiro), Daniel Soares Bonfim e, por último, Arnaldo Regalin, percorrem o desafio de manter lazer, ação social e um local para estabelecer laços de amizade. Se a história não escreve linhas por acaso, o fato é que foi em um 14 de setembro de 1958 que o Grêmio Triagem obteve seu primeiro troféu de campeão. Naquele mesmo dia nascia o atual presidente, Arnaldo Regalim, em uma das casas da antiga colônia, perto de onde é o atual estádio.

Tese de arquitetura do acervo da Unesp de Presidente Prudente refez o mapa da Vila, com o campo e a última casa onde morou colono – nos destaques 2 e 3
O TÍTULO DE 1997

Aquela tarde de domingo de dezembro de 1997 nunca mais será esquecida entre os baririenses. O jornalista Leonardo de Brito descreve que “num jogo tumultuado nas arquibancadas, que teve reflexos no clima em campo, o Triagem empatou com a Associação Atlética Bariri por 3 a 3, no estádio Farid Jorge Resegue”. Um.jogaço.

No jogo de ida das finais, o Triagem venceu por 2 a 0. Fabinho fez os dois gols dessa vitória. Em casa, o time de Bariri precisava vencer para forçar a terceira partida.

O jogo foi tenso, torcedores de diferentes bairros de Bauru marcaram presença em Bariri. No campo, o Triagem vencia por 3 a 2 e levou o empate no final da partida. Até hoje questionam se a bola atravessou mesmo a linha, após um bate-rebate.

O bandeirinha levou uma tijolada. Policiais e torcedores tiveram entrevero nas arquibancadas. Teve corre-corre, bauruenses machucados. Os registros da partida incluem que viaturas policiais escoltaram os ônibus de Bauru até o trevo de saída, em Bariri.

De volta à sede, o título foi comemorado até a madrugada.

JC registrou gol de Fabinho em um jogo da final, no Mirante
O BI EM 1999

O bicampeonato veio em 1999. Depois do placar em branco nas partidas em Bauru e em São José dos Campos, a Federação Paulista marcou para Piracicaba o confronto derradeiro.

O time bauruense se impôs em campo, mandou no primeiro tempo, abriu o placar, ampliou e administrou o resultado na etapa final. O gol de misericórdia veio aos 38 minutos, com Fabinho.

O Triagem comemorou o bicampeonato contando apenas com ajuda de colaboradores e empresas locais para se manter. Ainda naquele tempo, o Poder Público participava com muito pouco – dada a abrangência, alcance social e esportivo de um dos maiores campeonatos de futebol amador do Interior.

Veja as escalações dos times vencedores em 97 e 99, publicados pelo JC:

O CAMPO

A construção do campo atual do Triagem e da arquibancada foram marcadas por ação voluntária.

A Prefeitura, no início dos anos 90, recebeu autorização do Triagem para retirar centenas de caminhões de terra na Vila. O material foi utilizado para as obras de extensão da avenida Nuno de Assis, da altura da Rodoviária até a rodovia Marechal Rondon. Isso no primeiro governo Izzo Filho (1989-1992).

A coordenação conta que a contrapartida era o governo fazer o campo. Mas ficou no terrão. Arnaldo Regalin lembra que o campo saiu de contribuições com caminhão, serviços. E nada de alambrado ou outras benfeitorias.

A construção da arquibancada (foto abaixo) teve participação relevante do Legislativo, já no governo Tidei de Lima (1993-1996). Foi aprovado termo de acordo preparado pelo vereador Faria Neto e encerrada a pendência. O Município cedeu materiais (cimento, areia). O clube se virou com a mão de obra. 

Mais tarde, foi levantado o espaço de lazer, substituindo o antigo barracão da sede original. Assíduos frequentadores do Triagem contam que políticos também gostavam muito do local. Sobretudo para aquelas típicas reuniões de ajuste, entre correligionários. Hoje seria o que chamam de “fora das quatro linhas”. Mas isso é outra história …

Fotos da construção da arquibancada e aérea do campo principal atual do Triagem

AS CORES

As cores iniciais do time do Triagem eram azul e branco, da Cia Paulista de Estrada de Ferro. Vermelho, preto e branco foram adotadas depois, quando a Companhia utilizou as cores do Estado de São Paulo, já como Fepasa. Os veteranos do Cabo Triagem mantém a tradição. E Nardão não abre mão do figurino completo. Ainda na quarta-feira desta semana, exigiu que um dos atletas trocasse a meia (era curta, no meio da canela; vermelha, mas com um raio em branco…).

Vida longa ao Triagem. Quem sabe, um dia, os atletas possam embarcar de trem no Centro e descer pertinho do Mirante. Um roteiro urbano para passageiros, pelos trilhos …

Abaixo, registros de diferentes jornadas, do acervo de Arnaldo Regalim: 

Festa da torcida com o título da Copa Kaiser; os jogadores Fenê e Juninho Aderaldo posam juntos no campo do Triagem
Triagem homenageia os cronistas Jota Martins e Norival Sandi (centro, abraçados), em jogo amistoso com a imprensa

Arnaldo Regalin, o secretário de Esportes Antonio Carlos Barbosa e o presidente do Noroeste, Damião Garcia, na ida da escolinha do Norusca para o Triagem
A área de lazer foi agenda de muitas reuniões secretas de políticos nos anos 90
O antigo salão de festas, onde ocorriam as agendas sociais  (antigo Ferroviário)

A bola segue rolando no campo toda semana. Às quartas feiras é dia do Cabo. Nos finais de semana, o estádio recebe rodadas do Futebol Amador.

Não conhece o Cabo? Na reportagem abaixo sobre esta parte levantamos  curiosidades, conversas de vestiário e o estatuto original:

Leia neste link:

A bola segue ‘nos trilhos’ no Triagem. E o nascimento do Cabo no Mirante Ferroviário

A FERROVIA 

O antigo complexo ferroviário de Triagem, localizado em Bauru (SP), foi palco estratégico da logística e manutenção dos equipamentos rodantes da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Hoje um parque obsoleto, cemitério de sucatas.

Os trilhos determinaram vetores de expansão da cidade ao possibilitarem o crescimento do sistema fabril que, por sua vez, foram responsáveis pelo crescimento de bairros inteiros, segundo relatos como o de Arcôncio Pereira (conforme estudo do professor Losnak, publicado em 2003).

Além de atividades destinadas à manutenção de locomotivas e vagões, a área era o principal ponto de manobra de equipamentos rodantes das bitola larga e métrica. Daí, a função estratégica de transferência entre trens de produtos nacionais oriundos do setor agropecuário e também de transporte de passageiros no local.

A estação ferroviária de Triagem foi aberta em 1937 – como parte do ramal de Bauru e, a partir de 1941, tornou-se parte do tronco oeste. Triagem era um importante centro de manobras para a bitola larga na região de Bauru.

A história de Triagem está intimamente ligada a da própria ferrovia em Bauru. A estação, inicialmente, fazia parte de um ramal, mas foi integrada ao tronco oeste – rota essencial para o transporte de cargas e passageiros desde então.

Por volta dos anos 2000, ocorre a desativação da linha de Triagem no panorama nacional de privatização da malha férrea. . Então, a estação passou a abrigar locomotivas e vagões sucateados da extinta RFFSA.

A história do Entroncamento Ferroviário tem início em 1905, quando a cidade recebeu sua primeira ferrovia: a Estrada de Ferro Sorocabana. Ela ligava Bauru a São Paulo.

Em 1906, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (Nob) inaugurou seu primeiro trecho (Bauru – Avaí), no prolongamento da Sorocabana. O traçado inicial da Nob ia até um canto do Mato Grosso.

Em 1908, o destino da linha foi alterado para Corumbá, no Mato Grosso do Sul, rumo às fronteiras boliviana e paraguaia. O novo caminho foi herança das bandeiras que rumavam para o Oeste, com a intenção de conquistar territórios desconhecidos.

Em 1910, com a chegada da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Bauru passou a abrigar um dos maiores entroncamentos ferroviários do interior do continente.

Já em 1939, com a conclusão da nova e enorme Estação da Noroeste, que englobava também os escritórios da empresa, todos os embarques e desembarques das três ferrovias foram centralizados nessa Estação.

Em 1957, a Nob foi incorporada à Rede Ferroviária S.A. No final de 1995, os trens de passageiros da Noroeste foram extintos. Em 1996, a concessionária Novoeste assumiu a Ferrovia. Depois passou para a ALL e hoje está com a Rumo. 

Os trens de passageiros para Bauru, na antiga linha da Cia. Paulista, chegaram à estação pela última vez em 15 de março de 2001. Em 2010, o prédio da Estação foi adquirido pelo município. Mas permanece sem uso. Enquanto houve trens de passageiros, o complexo da Estação da Noroeste em Bauru foi considerada o maior entroncamento ferroviário do Brasil.

3 comentários em “Por que o trem apita em festa ao passar pelo Mirante Ferroviário em todo 17 de julho?”

  1. Triagem palco de grandes eventos, muitas festas muitos bailes carnaval festa junina era o ponto de encontro de todas os bairros da região que iam festejar na vila de triagem, eu sempre Vivi na vila Cardia e podia apreciar cada momento na vila de triagem, pena que a ferrovia se foi.

  2. Parabéns e obrigada pela excelente matéria, que resgata uma parte de nossa história bauruense.
    Sugestão: promover uma exposição no mês do aniversário da cidade.
    Toda nossa gratidão aos que com lutas e alegrias nos trouxeram até aqui.

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