A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) abriu na Quarta-feira de Cinzas a Campanha da Fraternidade 2023 sobre a Fome no Brasil. O secretário-geral da CNBB, dom Joel Portella Amado, enfatizou que “o Brasil enfrenta o flagelo social e humanitário da fome, fenômeno que demonstra a incapacidade de um país em oferecer para seus filhos e filhas as condições necessárias para satisfazer o seu instinto de sobrevivência e desenvolvimento como pessoa”.
Em Bauru, retornamos ao tema para destacar, em reportagens, que não estamos isolados no desafio. Por isso, o segundo episódio da Série Texto Musicado chama a atenção para diferentes vetores da vulnerabilidade social, onde estão a fome e o “Canto da rua”. A resposta falha à insegurança alimentar e ao aumento de famílias que vivem em situação de pobreza dimensionam os desafios. Por qualquer dado que se levante o quadro é cruel. Em 2012, segundo o banco de informações oficiais do Governo Federal, Bauru tinha 23.592 famílias cadastradas. Em 2020, último ano da última gestão e no início do período da pandemia do coronavírus, eram 37.070. Em janeiro deste 2023, conforme o cadastro, seriam 43.929.
Especialistas alertam, desde a crise sanitária, que a vulnerabilidade social sofreria expansão no pós pandemia. E, para além da discussão em torno dos critérios adotados, 13.912 famílias são reconhecidas pela União como na situação de “extrema pobreza” na cidade.
O quadro atualizado, aliás, passa por outro desafio. Não por acaso, a Prefeitura de Bauru está realizando chamados seguidos para o CadÚnico. E não se trata apenas de refazer cadastro. Pelas regras atuais, o Município perde verbas se as famílias não forem inseridas no sistema. Segundo a União, até janeiro (passado) 27.566 famílias estavam com o cadastro atualizado. Ou seja, ainda em 63% do total.
Outro desafio, discutido em audiência pública recente pela vereadora Chiara Ranieri, é a forma e implementação dos serviços para alimentação. No ano passado, após muito tempo, apenas 1.800 cadastros (ou acessos) foram viabilizados. E o suporte com distribuição de cestas básicas despencou. O volume de entregas, nesta fase, é garantido basicamente por ações voluntárias.
E, para além das políticas públicas, a fome e a vulnerabilidade social são desafios para nossa capacidade de empatia, ou a falta dela.
CANTO DA RUA
A Secretaria do Bem-Estar Social de Bauru (Sebes) atualizou, em audiência pública em 2021 que foram identificadas na ocasião 205 pessoas em situação de rua, sendo 123 (60%) delas acolhidas em alguma programa municipal. Quantas pessoas estão nestas condições hoje?
Na época, conforme a secretária do Bem-Estar, Ana Cristina Sales, 50 desses cidadãos moravam na rua (30%), 26 são de fora de Bauru e 64 são encaminhados para outros serviços de suporte no segmento, como abrigo para idosos (6), atenção a deficientes (6), aluguel social (3), álcool e droga (22) e saúde mental (7).
De acordo com os dados da Sebes, 32 pessoas em situação de rua foram abordadas no Centro da cidade e regiões de maior circulação. Dessas, seis não eram do município de Bauru. Conforme a secretária Ana Sales, todos estão em situação de vulnerabilidade e fazem uso de álcool e outras drogas. Conforme os profissionais da Abordagem Social, não foram identificados indícios de tráfico e prostituição associados às pessoas assistidas.
Sob vários ângulos, e dados, a Rede de Assistência Social no Município mostra a grande defasagem na relação entre o aumento da pobreza e da demanda por atenção a programas de vulnerabilidade social e a cobertura concreta realizada pelo Poder Público em Bauru.
Conforme diretrizes do sistema SUAS, cada unidade CRAS deve atender, no modelo ideal, até 5.000 famílias, com estrutura regular contendo 1 coordenador de nível superior, 1 psicólogo, 1 assistente social e 3 agentes sociais, com 1 servidor para serviços administrativos e outro para limpeza.
No quadro oficial, informado pela Sebes, identificamos que várias unidades, entre as 9 existentes atualmente, já cobrem muito acima do referencial em número de famílias por área de abrangência. Por consequência, a estrutura funcional também acumula a mesma demanda reprimida.
Conforme a Diretoria de Proteção Básica da Sebes, os maiores gargalos estão nas regiões contempladas com habitação popular, conforme diagnóstico apresentado neste trabalho. A maior demanda reprimida está concentrada na região do CRAS 9 de Julho, que hoje atende a 12.256 famílias referenciadas (em situação de miséria ou pelo menos uma situação de vulnerabilidade concreta).
Estão nessa área moradias populares recentes, como Chácara das Flores, Primavera, Água da Grama. O quadro de vulnerabilidade em massa nessa região se associou a antigos bairros igualmente pobres, como Vila São Manuel e Jaraguá.
Levantamento apresentado pela Sebes ainda na revisão do Plano Diretor 2020, ação que está suspensa, apontara necessidade de mais 3 CRAS nessa região, além da ausência de Serviço de Vínculos para Crianças e Adolescentes.
Outra região apontada é nas proximidades do Jardim Ferraz, onde um CRAS atende a 7.829 famílias referenciadas, conforme a Secretaria do Bem-Estar Social. Nesta área estão também moradias populares mais recentes formadas no Jd. Vitória, São João do Ipiranga, Monte Verde e Vila Santista, contempladas com o Minha Casa Minha Vida. A ausência de Serviço de Convivência e presença de conjuntos verticais do MCMV em alguns pontos da região exigem, conforme a Sebes, mais 2 CRAS nessa área.
A Diretoria de Proteção Básica da Sebes apresentou, no Plano Diretor, em discussão temática, a necessidade de dobrar o número de unidades atuais de CRAS, além de instalação de serviços especiais de vínculos para crianças, adolescentes e idosos nessas regiões mapeadas.
O desafio não é a instalação física, mas de custeio, já que o Governo Federal participa com o cofinanciamento de apenas 30% das despesas nos CRAS, e em apenas 5 das 9 unidades atuais.
Chama a atenção a pressão que o aumento da área de cobertura sem a correspondente disponibilidade funcional faz sobre o resultado de atendimentos. Entre 2016 e 2019, o total de atendimentos caiu praticamente à metade, saindo de 65.509 naquele ano para 34.502 no ano passado.
Veja, ainda, no eixo Plano Diretor a menção em destaque de que a criação e revisão de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) terá de contemplar as chamadas Políticas Cruzadas, com a identificação de áreas em consonância com o mapeamento de vulnerabilidade social. Hoje a legislação de Impacto de Vizinhança (EIV) também não leva em conta os indicadores de vulnerabilidade social, mas se concentra em demandas de educação, saúde, transporte, sistema viário, saneamento e abastecimento de água. A revisão desse conceito, em lei, é apontamento em destaque, urgente, na revisão do Plano Diretor.
Assim, conforme o levantamento ainda da revisão do Plano Diretor interrompida em 2020, faltam unidades da assistência social em várias regiões, como
Jd. Vitória/São João Ipiranga (2) e uma unidade cada no Jd. Celina, Jd. Niceia, Eucaliptos/Manchester, Jd. Santana e Colina Verde.
Cadastro Único (CadÚnico)
O volume de famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) de Bauru acompanhou o comportamento da economia nos últimos anos. Durante os períodos mais graves da crise político-econômica que o País atravessou, entre 2015 e 2017, 1.154 famílias voltaram à condição de vulnerabilidade na cidade, de acordo com dados estatísticos da Seção Benefícios da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social (Sebes).
Neste período, podiam se inscrever no CadÚnico famílias que ganhavamm até meio salário mínimo por pessoa ou até três salários mínimos de renda mensal total. Assim, elas poderiam ser incluídas em programas da rede de assistência federal, estadual e municipal para suprimento de suas necessidades básicas.
Em 2017, o CadÚnico local contabilizava 41.320 famílias cadastradas. Porém, com a recuperação, mesmo que parcial, do nível de emprego em 2018 e 2019, e superação do momento de recessão econômica vivido nos anos anteriores, o número de famílias vulneráveis diminuiu no município. De 2017 para 2019, 4.619 famílias foram excluídas do cadastro por não mais cumprirem os critérios de renda exigidos.
Equipamentos de Assistência
Em concordância com o Sistema Único de Assistência Social (Suas), a Assistência Social Municipal mantém um conjunto de serviços, benefícios, programas e projetos distribuídos em Redes de Proteção Social Básica e Especial, de média e alta complexidade, com o objetivo de garantir aos cidadãos a segurança de acolhida, convivência, desenvolvimento de autonomia, rendimentos e sobrevivência em situações emergenciais ou circunstanciais.
Os serviços socioassistenciais executados pela Sebes, seja de forma direta ou através de cofinanciamento com as organizações da sociedade civil, possuem caráter preventivo, protetivo e proativo, sendo articulado por nove unidades do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), duas do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), um Centro-POP e por Organizações da Sociedade Civil (OSC), onde são ofertados no município os serviços, projetos e programas socioassistenciais.
Rede de Proteção
Segundo as informações da Sebes, a Rede de Proteção Social Básica tem como foco a prevenção de situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e a qualificação de vínculos afetivos e de pertencimento, situando a família em situação de vulnerabilidade como sujeito da proteção social.
É organizada de forma territorializada nas regiões com maior densidade demográfica e de maior concentração de vulnerabilidade, sendo composta por nove unidades do Cras. Até a pandemia, os serviços atendiam 54.545 famílias de Bauru, ainda com 8 unidades do CRAS.
Proteção Social Especial
É oferecida pelos dois Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que ofertam serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc).
Segundo a Sebes, a oferta de atenção especializada e continuada tem como foco a família e a situação vivenciada, visando o acesso a direitos socioassistenciais.
Para o exercício de suas atividades, Creas funciona de modo articulado com a rede de serviços da assistência social, órgãos de defesa de direitos e demais políticas públicas. A articulação no território é fundamental para fortalecer as possibilidades de inclusão da família em uma organização de proteção que possa contribuir para a superação da situação vivida.
Em Bauru, os dados até a pandemia informavam 2.283 famílias referenciadas pelos Creas.
EMPREGO
Outra forma de olhar para a situação social da cidade é o nível de emprego. E tabular os dados dos últimos anos ajuda a compreender o contexto.
A crise político-econômica iniciada no Brasil em meados de 2014 já tinha gerado forte impacto no nível de emprego, em âmbito nacional e municipal, com fechamento de postos de trabalho com carteira assinada em 2015, 2016 e 2017. Assim, Bauru, assim como o País, sequer teve tempo de recuperar o fôlego ainda do período anterior à pandemia, mesmo com parte da retomada de carteiras assinadas durante o período Covid, em 2020.
A necessidade de interrupção abrupta de boa parte das atividades econômicas, medida realizada pelas autoridades sanitárias, forçou a extinção de um volume expressivo de vagas de emprego em pouco tempo, na primeira etapa.
Portanto, para avaliar a situação pelo contexto, desde antes da pandemia, é preciso observar elementos da evolução do nível de emprego em Bauru entre 2015 e 2019. Os dados são do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgado pela Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia.
Nos três anos em que o País estava mergulhado na crise, entre 2015 e 2017, Bauru fechou 8.298 postos de trabalho – o valor é referente ao saldo entre contratações e demissões efetivadas no período. Vale destacar que os segmentos de serviços e comércio, que são os carros-chefes da economia local, foram os mais impactados no período, com perda de 3.041 e 1.837 vagas, respectivamente.
Em 2022, Bauru fechou o Caged com saldo (positivo) de 5.557 vagas de emprego. Boa parte do resultado se deve ao aumento da oferta de empregos por empresas no setor de serviços, como call center.
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Leia mais sobre vulnerabilidade social neste link. A matéria retrata crianças sendo utilizadas como “chamariz” para arrecadar dinheiro em semáforos da região mais central da cidade: https://contraponto.digital/criancas-no-semaforo-como-pedintes-ou-vendedoras-desafio-da-abordagem-social-permanece/
INSEGURANÇA ALIMENTAR
No final de 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo apontado pela Agência Estado, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.
Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. Pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004. A piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da epidemia do coronavírus agravaram a situação.
DESPERDÍCIO
Enquanto organismos internacionais e nacionais tentam estimular passos à frente na luta contra o déficit nutricional, o Brasil recua. Numa análise do consultor legislativo do Senado Henrique Salles Pinto, o panorama da fome no Brasil mostra que o país regrediu a um patamar equivalente ao da década de 1990. De acordo com o especialista, mesmo o fato de sermos o segundo maior exportador de alimentos do mundo no ranking da Organização Mundial do Comércio (OMC) não tem sido suficiente para erradicar o problema no território nacional.
Henrique acredita que essa situação poderia ser mudada se não houvesse tanto desperdício de alimentos no país. “De fato, em todo o território nacional, 39 mil toneladas de comida em condições de serem aproveitadas vão para o lixo diariamente em mercados, feiras, fábricas, restaurantes, quitandas, açougues e fazendas. O número leva em conta dados de vários setores: agricultura, indústria, varejo e serviços. São vários alimentos como iogurtes perto do vencimento, tomates manchados, pães “amanhecidos”, carne esquecida no congelador e milhares de itens que, por diversas razões, acabam descartados. Tamanha quantidade é suficiente para prover três refeições diárias a, aproximadamente, 19 milhões de pessoas”!, dimensiona Henrique Salles.
ESTOQUE
Ainda do material produzido pela Agência Senado está um tema que apresenta relação direta com o combate ao desperdício de alimentos: as estratégias de estoques de produção. Para Henrique Salles, o estímulo ao armazenamento poderia ser alcançado complementando-se a lei que instituiu o Alimenta Brasil. Isso porque, segundo ele, uma alteração no artigo 39 da Lei 14.284/2021 permitiria à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no âmbito das operações do Programa Alimenta Brasil, continuar articulando-se junto a cooperativas e demais organizações formais da agricultura familiar, inclusive com a apresentação de metas de ampliação de seus estoques públicos para o alcance dos objetivos do Alimenta Brasil, nos termos de regulamento. A modificação da lei, no entanto, cabe a senadores e deputados.
Outro assunto frequente nos debates do Congresso, conforme o consultor, refere-se a medidas financeiras para agricultores (principalmente familiares) aumentarem sua produção e destinarem essa produção a pessoas de baixa renda. Ele citou como referências a Lei 11.326/2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, e a Lei 14.284/2021, que concede auxílio financeiro aos agricultores familiares brasileiros, de modo a auxiliá-los em suas atividades produtivas.
“Garantir recursos suficientes no Orçamento da União para o referido programa ao longo dos próximos anos deve ser uma das prioridades dos parlamentares brasileiros. Nesse mesmo sentido, a garantia de, no mínimo, R$ 600 mensais às famílias inscritas no Bolsa Família é fundamental para reduzir os índices de insegurança alimentar e nutricional no país”, alerta o consultor do Senado.